Pentecostalismo e os afrodescendentes: diferenças e semelhanças entre os EUA e Brasil


A história do pentecostalismo têm em sua gênese forte participação dos negros, os quais desde os primórdios desse movimento tiveram uma participação determinante para a disseminação dessa forma de protestantismo popular. A participação dos negros é evidente, tanto nos EUA onde o movimento se iniciou, como no Brasil onde ele se propagou e em menos de um século arrebanhou milhões de fiéis de norte a sul do país.

O pentecostalismo é descendente dos avivamentos ocorridos dentro das denominações do protestantismo histórico nos século XVII e XVIII na Europa. Rejeitando a teologia e a prática de fé formalista dessas denominações, grupos de fiéis começaram a buscar uma espiritualidade mais profunda e intensa. Entre esses grupos se destacaram os quackres, metodistas e os pietistas.

Migrando da Europa para os EUA, esses grupos com o passar dos anos, gerou dentro das denominações os chamados movimentos de santidade (holiness), que no início do século XX já haviam causado divisões entre as igrejas e desenvolvido entre seus membros duas crenças básicas: a atualidade do poder e dos dons do Espírito Santo, cujo sinal exterior era o falar em línguas estranhas (glossolalia), e a crença de que o fim do mundo estava próximo.

É importante salientar, que esses movimentos de santidade se espalharam por todos os Estados Unidos, e vários ensinadores e teólogos surgiram nesse período, procurando popularizar e sistematizar as crenças básicas do pentecostalismo moderno. O pentecostalismo desde o seu nascedouro então, é um movimento heterogêneo, tanto teologicamente como socialmente.

Assim foi que volta de 1900, um pastor chamado Charles Parham difundiu em sua escola bíblica em Kansas nos EUA o ensino da glossolalia como evidência do batismo com o Espírito Santo. Parham era um admirador do Ku-Klux-Klan, e permitia somente que seus alunos negros ouvissem suas aulas do lado de fora da porta. Entre esses negros estava William Joseph Seymour de filiação batista, garçom de profissão e filho de ex-escravos.

Ao receber os ensinamentos de Paham, Seymour crê na mensagem ministrada em Kansas e se torna um pregador da novidade teológica disseminada. Em 1906 ele é convidado para pregar em uma igreja negra holiness em Los Angeles, a qual nesse período era a cidade que mais crescia no país e que concentrava um grande contingente de minorias e migrantes de várias partes do mundo. Suas pregações sobre a atualidade dos dons espirituais e do batismo com o Espírito Santo causaram enorme sensação na igreja e na cidade, e a notícia de que um grande avivamento espiritual estava ocorrendo naquela igreja, aumentou em muito o público de ouvintes, forçando Seymour a alugar um antigo galpão que pertencia a uma outra denominação para realização de seus cultos.

Freston assim resume a diversidade e as conseqüências desse movimento liderado por Seymour no início do século XX em Los Angeles:

Da liderança multi-racial de Azuza Street, de 12 "anciãos", pelo menos seis eram mulheres. A liderança de negros e de mulheres é marcante nos primórdios do pentecostalismo. Pastores brancos do sul iam a Los Angeles para receber as ministrações dos líderes negros. Mas essa convivência, tão inusitada na época, não durou muito. O movimento pentecostal, originadamente concebido como uma renovação das igrejas independentes começou a solidificar-se em grupos independentes, separados por querelas doutrinárias. Dentro de cada segmento a separação racial se deu dentro de uma década. Os brancos que haviam recebido a ordenação na Igreja de Deus em Cristo (predominantemente negra) saíram para fundar a Assembléia de Deus (quase exclusivamente branca) em 1914. (FRESTON, 1995, p. 74-75).


Como se percebe o pentecostalismo no início do século XX  foi um movimento que reuniu minorias e migrantes de várias partes do mundo, porém com o passar do tempo a institucionalização dos diferentes grupos em igrejas, evidenciaram as questões sociais e étnicas da sociedade na qual estavam inseridos. Brancos e negros participantes do movimento pentecostal concordavam nas questões básicas do pentecostalismo, como o batismo no Espírito Santo e na atualidade dos dons espirituais, mas divergiam principalmente nas implicações políticas e sociais da prática da fé, conforme nos diz Rolim:

Segundo estudiosos do pentecostalismo norte-americano, no movimento pentecostal dos negros a religiosidade de santificação se aliava e continua se associando à luta política, carregando para seu seio tanto um potencial de resistência à dominação econômica como a força da cultura negra com seus símbolos, canções e ritmos (...) Numa linha inteiramente diferente, mesmo oposta, o grupo pentecostal dos brancos estadunidenses deu particular ênfase ao batismo do Espírito Santo (...) Não se cantava a libertação do oprimido. Antes louvava-se o poder do Espírito (...) A visão que os crentes brancos tinham de Cristo e do Espírito Santo ia se tornando diferente da dos negros pentecostais. (ROLIM 1985, p. 70).


O certo é que enquanto os brancos se direcionavam para uma espiritualidade voltada para o sagrado e um "reino que não é deste mundo", os negros faziam das suas pregações e cânticos uma forma de resistência política e cultural à sociedade racista. Para eles "Deus é um ser implicado na História - em sua história - que reparará as injustiças cometidas pelos brancos"(HOLLENEGER 1976 apud ROLIM, 1985, p. 70).

O movimento pentecostal no Brasil iniciado em 1910 com a Congregação Cristã e com a Assembléia de Deus em 1911, herda já nos seus primórdios a forma de espiritualidade dos pentecostais brancos. Até por que seus fundadores eram migrantes europeus que trabalhavam nos EUA e tiveram contato com o avivamento iniciado em Los Angeles.

Mas as duas denominações teriam em território brasileiro pregações e públicos distintos. A Congregação Cristã se voltaria exclusivamente para os imigrantes e descendentes de italianos concentrados no estado de São Paulo e estados limítrofes. A Assembléia de Deus fundada por dois suecos se organiza no Norte, mais precisamente em Belém do Pará e dessa cidade se expande por todo Norte e Nordeste, atingindo em pouco mais de vinte anos  todos os estados da federação.

Ao contrário da Congregação Cristã, que se concentrou em somente uma região, o crescimento da Assembléia em seus primórdios segue a rota dos imigrantes nordestinos, os quais ao deixarem seus estados de origem, seguem em direção ao sul em busca de melhores condições de vida e trabalho. Sendo uma forma de protestantismo popular, com forte apelo emotivo e a uma espiritualidade subjetiva (longe do letramento e elitismo das igrejas protestantes históricas), o pentecostalismo encontra entre as camadas mais simples e abandonadas seu público alvo.

Entre essas massas se destaca grande parte dos descendentes de escravos, que uma vez libertados em 13 de maio de 1888 migram das lavouras de café e partem para os centros urbanos em busca de trabalho e melhores condições de vida. Soma-se ainda a esse contingente, os libertos que ficaram perambulando pelas ruas e avenidas das cidades em busca de sobrevivência.

Segundo o historiador José G. de Moraes as reformas urbanas realizadas anos antes na então capital da república, expulsou toda a massa de moradores que havia ocupado os cortiços e casarões abandonados, forçando-os a se deslocarem para os morros e periferias da cidade.

A maioria da população pobre e de classe média baixa que vivia na Cidade Velha deteriorada, ao enfrentar as obras de remodelamento e embelezamento, transferiu-se compulsoriamente para os morros contíguos ao centro ou para os subúrbios (...) A imensa maioria dos habitantes dessas regiões eram negros, mulatos e mestiços de toda espécie, de origem rural ou urbana. (MORAIS 1994, p. 59-60)


São nesses subúrbios que os pregadores pentecostais mais conseguiram adeptos, e  essa recepção da mensagem pentecostal entre os descendentes de escravos seguramente até hoje é percebida, pois pesquisas feitas na região metropolitana do Rio de Janeiro revelam que entre os membros das atuais igrejas pentecostais é constituída por mais de 50% de negros e pardos. (FERNANDES 1998, P. 23)

Segundo Marco Davi de Oliveira pastor batista e coordenador do Movimento Negro Evangélico, o pentecostalismo com sua forma de culto, onde as expressões corporais, utilização de instrumentos regionais, hinos animados e participativos; propiciam a identificação da cultura negra com essa forma de protestantismo popular. Ainda segundo o escritor três aspectos da espiritualidade negra são contemplados na pentecostalidade: a espontaneidade, expansividade e a abnegação.

No livro "A religião mais negra do Brasil" Marco de Oliveira afirma ainda, com base em dados do IBGE que os afrodescendentes nas igrejas evangélicas pentecostais somam mais de oito milhões de adeptos, tendo somente a Assembléia de Deus mais de 50% de seus fiéis de origens negra. Porém para o referido autor, de maneira geral, são poucos os líderes negros de expressão dentro da comunidade pentecostal, refletindo segundo ele dentro das igrejas pentecostais os preconceitos desenvolvidos e assimilados pela sociedade brasileira como um todo.

Pelo que se percebe longe de haver uma separação entre igrejas de brancos e negros como aconteceu e ainda acontece nos EUA, no Brasil o movimento pentecostal conquistou para si um grande contingente de membros afrodescendentes, deu a eles espaço, mas por outro assimilou as desigualdades latentes nessa mesma sociedade. Em suma, somente resgatou para si aspectos litúrgicos do pentecostalismo negro dos EUA, mas não as suas lutas políticas.

 Apesar de ter desenvolvido essa alienação das causas  negras e populares, dentro do próprio movimento existem vozes que reclamam e denunciam o afastamento do pentecostalismo de suas origens históricas, como é o caso da ex-ministra Benedita da Silva quando diz:

Eu não sou menos negra, menos consciente, porque sou pentecostal! Do meu ponto de vista, eu sou mais consciente, sou mais negra, porque eu sou pentecostal. Porque eu conheço a história dos pentecostais, da luta dos pentecostais, no Brasil, se tornaram de direita mas, na origem, eram um movimento altamente revolucionário (...) Eu resgato sempre historicamente o movimento dos pentecostais (...) É importante colocar que o pentecostalismo tem uma ação altamente revolucionária, e tem a ver com a negritude. O pentecostalismo é uma das linhas altamente discriminadas dentro da religiosidade porque alegam que os pentecostais são ignorantes, são aqueles que, não tendo conhecimento, se deixam levar. E é discriminado também porque tem uma origem racial muito forte, tem muitos negros. E quando o pentecostalismo chegou ao Brasil, ao invés de ele ter vindo com a força política progressista que possuía, mandaram para cá os missionários brancos. Você não vê nenhuma manifestação de missionários negros por aqui! (...) Quando houve, então, a pregação do pentecostalismo no Brasil, através desses missionários brancos, eles retiraram o potencial político e racial dos discursos. A pregação pentecostal ficou reduzida a colocar o homem e a mulher a serviço de Deus e do próximo. Houve uma espécie de alienação do pentecostalismo, mandando os seus fiéis não se meterem na política. (NOVOS ESTUDOS DO CEPRAP, novembro de 1995).
 
Para Benedita, portanto o movimento pentecostal ao ser transplantado da América do Norte para o Brasil por missionários brancos perdeu suas características de inclusão racial e política praticada em suas origens; a ex-senadora comenta ainda sobre o fato de o pentecostalismo ter emergido de igrejas batistas e não ter herdado dessa denominação alguns aspectos sociais e políticos:

Essa não era a proposta dos pentecostais, pelo contrário. Os batistas, por exemplo, organizaram trabalhadores; a Bíblia é o maior best-seller que você possa conhecer: as coisas que a Bíblia diz em termos de direitos! ; ela nos ensina em todos os momentos. (NOVOS ESTUDOS DO CEPRAP, novembro de 1995). 


Portanto diante dessas afirmações pode-se refletir não só sobre as contribuições que a cultura afro tem dado ao pentecostalismo no Brasil, mas também repensar se os espaços de liderança e poder nas denominações pentecostais de hoje, condizem com a grande quantidade de membros ativos nesses grupos religiosos.


 Fontes


ALENCAR, Gedeon. Protestantismo Tupiniquim: hipóteses da (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2007.

ARAÚJO, Isael de. Dicionário do Movimento Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.

FERNANDES, Rubem Cezar (org.) Novo nascimento: os evangélicos em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

FRESTON, Paul. Breve História do Pentecostalismo. In: ANTONIAZZI, Alberto. Nem anjos nem demônios; interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.

MORAIS, José Geraldo Vinci de. Cidade e cultura urbana na primeira república. São Paulo: Atual, 1994.

NOVOS ESTUDOS DO CEPRAP, novembro de 1995.

OLIVEIRA, Marco Davi de. A Religião mais negra do Brasil. São Paulo. Mundo Cristão, 2004.

OLIVEIRA, Marco Davi de. Espiritualidade, Identidade e Cultura. In: BOMILCAR, Nelson. O melhor da Espiritualidade Brasileira. São Paulo. Mundo Cristão, 2005.

ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: uma interpretação sócio-religiosa. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.


Comentários

  1. Mano, gostei da postagem sobre esse assunto, principalmente falando sobre as origens, voce foi muito feliz ao escolher esse assunto...
    Deus te abençoe...

    jorge luiz

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