O dia de Benedita na Constituinte

Ela sempre destoou dos políticos evangélicos por seu perfil inusitado. Trabalhou como empregada doméstica, faxineira, camelô, auxiliar de enfermagem e assistente social. Em 1982, foi a única vereadora eleita pelo PT na cidade do Rio de Janeiro. Quatro anos depois chegou à Assembleia Nacional Constituinte com o lema "Mulher, negra e favelada".

Benedita da Silva nunca se enquadrou (ou se enquadra) dentro do modelo conhecido de parlamentar evangélico. A maioria dos colegas da deputada fluminense na Constituinte eram pastores, cantores sacros, ou empresários bem-sucedidos. Muitos deles, aliás, sem experiência política e defensores de teses conservadoras.

Benedita: momento histórico

"Bené", como carinhosamente é chamada, não chegou ao Congresso por indicação convencional ou apadrinhamento eclesiástico, mas construiu sua trajetória pública nas favelas e em constantes lutas sociais. Com visões e práticas políticas tão opostas aos dos seus pares evangélicos, os embates com seus irmãos parlamentares foram permanentes.

Criticada por muitos setores evangélicos, Benedita, contudo, protagonizou um momento insólito naqueles dias de grandes esperanças para o Brasil. Em uma "Cena simbólica" como registrou a revista Veja (edição de 1º de julho de 1987), Bené viveu um dia para entrar na história.

No plenário da Constituinte de 1823, discutiam-se a liberdade de imprensa, os poderes do imperador dom Pedro I e como seria o país que acabava de declarar sua independência - mas nenhum parlamentar ocupou-se da questão do trabalho em um país que, naquela época, utilizava mão-de-obra escrava. Na última quarta-feira, quando a deputada Benedita da Silva, do PT fluminense, assumiu a presidência da Constituinte pelo prazo de 30 minutos, ocorreu um fato histórico. Pela primeira vez na História do país, uma neta de escravos que trabalhavam em fazendas de Minas Gerais comandou a sessão do plenário encarregado de escrever uma nova Carta de Leis para o país.

No dia seguinte, mais uma vez por meia hora a deputada presidiu o trabalho da Constituinte. Diante de tamanho simbolismo e privilégio por ocupar (ainda que transitoriamente) à presidência da Mesa, a deputada disse que sentiu "calafrios". "Eu nunca me preparei psicologicamente para isso" - revelou ela.

Crítica das estruturas sociais do país, a futura governadora do Rio de Janeiro declarou: "Favelado só aparece nos jornais em condições desfavoráveis. Espero apenas que, um dia, isso não seja mais novidade." A questão simbólica para ela era importante, contudo isso deveria ser superado pela promoção da justiça social em uma nação com tantas desigualdades.

Durante o processo de elaboração da nova Carta Magna, os evangélicos comemoraram algumas conquistas políticas e simbólicas. As mais celebradas foram a inclusão do nome de Deus no preâmbulo da Constituição e a Bíblia na Mesa da Assembleia Nacional Constituinte. Todavia, a conquista de Benedita permaneceu ignorada. No Mensageiro da Paz não há uma linha sobre o dia histórico vivenciado pela assembleiana moradora do Morro do Chapéu.

Porém, quase duas décadas depois é interessante revisitar a matéria, que um dia poderá ser bem aproveitada na historiografia protestante. A ex-empregada é um exemplo de crentes inseridos na vida pública que vieram realmente "de baixo", ou seja, de bases populares.

Fontes:

FRESTON, Paul. Evangélicos na política: história ambígua e desafio ético. Curitiba: Encontrão Editora, 1994.

Arquivo Digital Revista Veja - edição de 1º de julho de 1987, p.36.

Comentários

  1. Excelente, Benedita representa o viés pentecostal assembleiano, que não se identifica com as classes dominantes, sobretudo, os homens machistas e famintos pela perpetuação no poder, pelo contrário, representa a figura da mulher, que além de pobre, é negra, isto é, a figura emblemática da mulheres assembleias, que construíram com muito esforço grande parte do que a Assembleia de Deus é hoje, não são respeitadas e muito menos reconhecidas da forma que merecem, pela grande importância que têm na história pentecostal.

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