Pastor num lê bíblia errado não!

*Por Gedeon Alencar

Um senhor entre quarenta e cinquenta anos senta ao meu lado com o jornal do metrô. Poucos minutos depois, me oferece o jornal:

 — “Quer o jornal? Eu num sei ler não. Pego apenas para ver as fotos!”.

Depois do choque inicial, pergunto: 

— Se não sabe ler como o senhor pega ônibus? Ele me responde confiantemente: 

— “Pelas cor”! — Como assim “pelas cor”? Você sabe exatamente qual a cor do ônibus que vai para seu trabalho ou para sua casa?

Ele, então, me explica que não pega ônibus, pois, mora ao lado do trabalho. Somente esse quando precisa ir ao Jabaquara.

Eu não conseguia acreditar que estava diante de um cidadão com o Metrô News nas mãos, andando de ônibus na maior cidade do país, mas analfabeto. Continuamos a conversa. Com seu palavreado típico e original, não demorou muito para eu descobrir que era cearense (como eu) e crente pentecostal (idem). 


Veio para São Paulo há mais de vinte anos e nunca voltou para visitar a família. Nunca gostou da cidade, pois sempre viveu na roça. Saiu da zona rural direto para São Paulo. Chegou um dia pela manhã e, depois do almoço, começou a andar nas ruas da periferia onde moravam seus parentes, e encontrou uma empresa contratando zelador. No dia seguinte já estava trabalhando. Nunca foi ao Centro, não conhece absolutamente nada além de sua casa, trabalho e estação do Metrô Jabaquara, onde vem receber ou entregar alguma encomenda do seu patrão. 

Fora da casa e trabalho, também vai à igreja. Tudo isso foi “bença de Deus”, pois trabalha ao lado de casa e tem um patrão “que é bom demais, um pai”. Seu patrão confia muito nele, já que fica com as chaves da empresa, até da sala do chefe. É o primeiro a chegar e o último a sair; chega cedinho para fazer um cafezinho para o patrão; ganha presentes e gosta tanto do trabalho e o patrão gosta tanto dele que todos esses anos nunca tirou férias; seu chefe e a empresa não querem ficar sem ele, por isso “paga as férias direitinho”. “Não é uma bença?”, ele arremata. 

Quando descubro que é crente, pergunto: — Como você é crente e vai para a igreja e não lê sua Bíblia? Ao que me responde convicto: — Não preciso ler não, macho. O pastor lá na igreja lê a Bíblia pra gente! — Mas seu pastor pode tá lendo a Bíblia errado.... — ele não me deixa terminar a frase, interrompe e dá um tapa no meu ombro. “Tá doido é, pastor num lê Bíblia errado não, macho!”. 

Aviso aos leitores: esse cabra da peste, cearense, pentecostal, tem razão. Concordo com ele. Émile Durkheim também concorda. No clássico Formas Elementares da Vida Religiosa, ele conceitua religião como comunidade moral. Aliás, a primeira e principal produtora de valores morais. Mais: valores corretos. Esse crente corrobora a tese durkeimiana: a igreja, ou mais especificamente, sua igreja é uma comunidade moral. E verdadeira. 

Esse indivíduo é digno de confiança — seu patrão que o diga. Marxistas e, até weberianos como eu, podem interpretar esse “fato social” de modo diferente, mas não podem negar que a construção da confiança entre esses indivíduos — patrão, empregado e também pastor — se deu por causa de sua moralidade religiosa. “Foi uma bença de Deus esse emprego, meu amigo. Por isso, eu não posso enganar meu patrão. Deus tá vendo!”. Mas o que me interessa fundamentalmente nessa história é sua relação de confiança com a leitura bíblica de seu pastor. 

Quem é o pastor de uma pessoa nessa camada social?(1) Alguém do seu mesmo nível social, escolaridade e, invariavelmente, morando no mesmo espaço geográfico. Portanto, longe da categoria de “consumidor” e “produtor de bens simbólicos”. Não há um abismo social e teológico entre ambos. Nesse caso, uma liderança carismática que é legitimada por seus seguidores; há uma relação intrínseca de confiança recíproca nessa comunidade moral. Todos se conhecem, pois, inclusive, moram perto uns dos outros. Há, efetivamente, uma “coesão social” (novamente Durkheim). As relações fraternas, empregatícias, religiosas e institucionais estão imbricadas. E funcionam. 

A leitura bíblica — “correta” — que seu pastor faz é exatamente a que ele faria se fosse capaz de ler. Eles têm os mesmos valores, agem baseados nos mesmos princípios, já que culturalmente estão no mesmo barco. Diferente de grupos religiosos onde seus líderes “estão no mesmo barco, mas em camarotes diferentes”. Por isso, recorrendo mais uma vez a Durkheim: “Não existe religião alguma que seja falsa. Todas elas respondem, de formas diferentes, a condições dadas da existência humana”. Portanto, sua religião é verdadeira, ela lhe dá “sentido” e isso lhe é suficiente e necessário; é o “sentido” que ele precisa. 

Foi essa sensação que tive olhando para aquele falastrão ao meu lado. Feliz da vida pelo emprego, crente convicto na atuação do divino e tranquilo na sua relação com seu pastor. Nenhuma pretensão dialética na relação da senzala com a casa grande; nenhuma tensão teológica na epistemologia pastoral para uma leitura bíblica contextualizada. Não esperava e nem achava necessário nenhuma mudança: “Tá bom do jeito que está!”, disse quando tentei convencê-lo da necessidade de saber ler numa cidade grande como São Paulo. Me olha sorrindo, parece com pena de mim. Se ele tivesse lido Foucault me diria que o micropoder ... deixa para lá. 

Alienação? De quê? 

Esse cearense-pentecostal-analfabeto é, segundo a teoria marxista, um primor de alienação, ou seja, “não tem domínio da realidade”. Igualmente a qualquer um de nós — meus leitores alfabetizados, pós-graduados, modernos — quando falamos com um farmacêutico, médico, meteorologista ou cientista nuclear. Quem é de outra “casta científica”, sabe que o primeiro problema é a linguagem técnica. Alguém que não é farmacêutico sabe decifrar uma bula de remédio? A escrita é cifrada, as frases truncadas, cheias de palavrões indecifráveis. De uma complexidade infame, proposital. E essa droga ainda tem efeitos colaterais. Entendendo ou não a bula (ainda correndo o risco de que o farmacêutico não tenha entendido os rabiscos do médico) tomamos o remédio com base na confiança com relação ao médico, farmacêutico e o laboratório. Idem ao entrar em um avião, comprar um aparelho eletrônico ou entregar nosso dinheiro a um banco. Ou deitar na cadeira de um dentista, abrir a boca e deixar ele fazer um canal. Nesse caso, o único domínio que temos é o do pagamento. Poderia exemplificar com outros profissionais, mas é suficiente. 

Por que nós, escolarizados, modernos e alfabetizados, podemos — e não temos outra opção — confiar cegamente em dentistas, cientistas, aparelhos eletrônicos, e meu amigo cearense-pentecostal-analfabeto não pode confiar na leitura bíblica de seu pastor? Alienado? Ele? 

Eu tenho inveja da tua vida, macho! Nota (1) Não uso a categoria classe, uma redução marxista de categoria econômica. Camada, um conceito weberiano, tem uma abrangência para além das afinidades econômicas, sendo uma condição social-cultural.

Referência: DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989. 

*Gedeon Freire de Alencar - Doutor em Ciências da Religião pela PUC/SP, Mestre em Ciências da Religião pela UMESP, Graduado em Filosofia e membro da Igreja Betesta de São Paulo/SP

Texto publicado originalmente na Novos Diálogos 

Comentários

  1. Coitado desse pobre homem pentecostal, ou seja, mais um herege protestante. Não precisaria confiar tanto assim na leitura bíblica do dito pastor se o referido pobre homem fosse católico e evangelizado fosse pela contemplação da arte sacra maravilhosa de muitos templos católicos do mundo todo, porque o objetivo da imagem na idéia nossa romana é que o analfabeto que não sabe ler as Escrituras pode ser evangelizado contemplando as imagens da Igreja. Logo, Émile Durkheim, parece errar e errar feio, não sou sociólogo, mas parece haver religião verdadeira, sim, e é só uma, pois Deus é só um, tal religião é a católica, religião revelada (segundo o Papa Pio XI), pois parece claro como o dia às 12 horas, as imagens para evangelizar os analfabetos são uma solução inspiradíssima que os iconoclastas protestantes desprezam, mas que resolvem o problema de tantos cearenses e demais caipiras e interioranos do sítio incultos e rudes do Brasil e do mundo inteiro.

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